Eduardo Bettencourt Pinto
Numa biografia perdem-se os barcos. Entregam-se datas e lugares como se a vida de um homem fosse apenas uma cartografia de sinais. Será melhor dar a conhecer as circunstâncias de um itinerário ou as suas variantes? É, digamos, complexa a escolha. A primeira hipótese faz o registo da historiografia do indivíduo, contextualiza-o em certo tempo e espaço; a segunda, esclarecerá os efeitos e as causas de um percurso. Delineará, em suma, o seu perfil interior a partir das experiências vividas.
Aqui não é lugar para tanto. Importam-me as raízes. Eu sou um estrangeiro - vim de África. Tenho, viva, a memória da minha casa, do meu corpo que era outro, do som da minha voz a correr pelos muros. Atrás ficaram pedras soltas do meu templo: o Guilherme, meu irmão, o "Nero" e o "Bobi", os gatos de minha mãe. Ficaram os melhores anos da minha vida, porque foram os primeiros.
“Um homem só nasce na terra que vem a conhecer depois, quando os calções da infância estão definitivamente arrumados no baú de outra idade.
Eu nasci em Angola, no Sul, numa pequena cidade (Gabela). Eu amava a sua melancolia, o cheiro do café em flor, a suavidade da neblina quando anoitecia, o cantar dos galos.
A minha pele tinha o cheiro daquele lugar – das suas casas de adobe, da voz do meu pai rente ao vento. Dos intermináveis cafeeiros de chuva.
Venho também dos Açores, de uma rua onde a casa de minha avó desafia o Tempo.
Cresci um pouco entre aquelas paredes, ouvindo o mar.
Minha avó Irene fazia tricô, lia, endoidecia com a nossa energia africana.
Fomos assim parar, eu e os meus irmãos, ao fulgor das olaias do quintal de meus tios, Veneranda e Guilherme. Havia bonecos de barro, jarros altos e frescos junto das janelas, a mesa grande onde minha tia, generosa, partia o pão. No quintal de cima, ouvia Beethoven, juro, quando os melros cantavam.
Tinha sido uma casa majestosa, aquela. Um lugar onde as lágrimas caíam no último olhar, onde o Inverno adormecia de mansinho no chão de musgo.
Sou um estrangeiro. Perdi os meus sapatos no deserto. Dormi em tendas de Sol e areia. A pele secou-se-me com a aridez dos ventos. Mas amo o que tenho e o que se foi. E sou feliz entre os rios.”
Eduardo Bettencourt Pinto (Angola, Gabela, 1954)
Poeta e ficcionista.